Um dos temas mais comentados nesses últimos dias é o tema da redação do ENEM: O estigma das doenças mentais na sociedade brasileira.
De certa forma, o assunto se encaixa com o momento em que estamos vivendo. Afinal, a pandemia trouxe não só os problemas econômicos e sociais, que não são poucos, mas sérios transtornos mentais oriundos do isolamento e da falta de perspectiva em relação ao futuro.
Durante todo o ano de 2020 falamos, aqui no blog, sobre questões relacionadas a esse momento único da humanidade – e o que a redação do maior exame de conhecimento do país fez foi colocar ainda mais evidência à importância de cuidar da saúde mental como cuidamos de qualquer desconforto físico: com a ajuda de médicos especialistas.
É oportuno, portanto, pegarmos o gancho desse tema para refletir em torno da questão e aprofundar o debate sobre a aceitação social aos transtornos mentais – se é que podemos dizer que ela existe.
O tabu das doenças mentais
Muito se fala em saúde física, em deixar o corpo sarado, bonito e forte ou, pelo menos, livre de dores crônicas. Mas não podemos nos esquecer que corpo e mente devem trabalhar juntos a fim de proporcionar maior qualidade de vida ao indivíduo.
Na contramão da busca por ajuda para um pé quebrado, por exemplo, o que vemos é um certo constrangimento de pacientes e seus familiares ao falarem a respeito de seus transtornos e serem rejeitados pela sociedade. Ninguém faz julgamentos sobre alguém com o pé quebrado, mas um transtorno emocional tem a potência de transformar uma situação comum em um grande espetáculo.
Infelizmente as doenças mentais são vistas por muitos como algo para se envergonhar, sendo que elas nada mais são que condições de saúde. Em vez de gesso e fisioterapia, elas pedem tratamento para lidar com mudanças na emoção, pensamento e/ou comportamento, associadas à angústia e obstáculos de interação nas atividades sociais, no trabalho e no círculo familiar.
O estigma em relação aos transtornos mentais ainda é grande e gera barreiras para todos que sofrem com essas doenças. Frequentemente essas pessoas são evitadas por amigos, familiares, colegas de trabalho ou da escola, sendo excluídas em processos de emprego e até mesmo vítimas de preconceito e violência.
A discriminação aos portadores de transtornos psiquiátricos cria ainda mais barreiras para dificultar sua integração social, negando oportunidades que poderiam trazer significativas melhorias no enfrentamento da condição.
O que podemos dizer, com toda certeza, é que pacientes com qualquer tipo de transtorno mental, em qualquer nível de desenvolvimento, não devem sentir culpa ou vergonha ao falar sobre isso. A ciência trata toda a gama de adversidades emocionais como aspectos médicos, colocando as doenças mentais no grupo de qualquer outra, como doença cardíaca ou diabetes.
E mais: existem tratamentos que dão aos pacientes a possibilidade de ter uma vida saudável e produtiva. Só que, justamente pelo estigma que se cria ao redor dos transtornos, eles não são sequer buscados.
Você duvida? É só parar pra refletir em quantas vezes você já ouviu alguém dizer: “não vou procurar psiquiatra ou psicólogo porque esses médicos são pra gente doida”…
Uma página que precisa ser virada
O preconceito relacionado aos doentes psiquiátricos no Brasil não é de agora. Na verdade, o que vivemos é um reflexo grotesco de ações erradas do passado, que causaram sofrimento e cerceamento da liberdade de muitos pacientes.
Um exemplo triste da nossa história é o que muitos chamam de “Holocausto Brasileiro”, em referência ao Hospital Colônia de Barbacena (MG). O lugar, projetado para acolher pessoas com transtornos mentais, acabou se tornando uma marca negativa na medicina psiquiátrica brasileira.
Vamos entender a razão: fundada em 1903 como uma casa de tratamento e apoio, a instituição começou a inchar pelos idos de 1930. Ainda sob a pecha de “hospício”, o Hospital recebia pacientes de todas as partes do país, e não necessariamente com transtornos mentais, como esquizofrenia, depressão ou ansiedade…
Para a Colônia eram encaminhadas pessoas que não eram aceitas pela sociedade ou determinados grupos. Ou seja, no mesmo local eram literalmente jogadas pessoas com doenças mentais, mendigos, homossexuais, crianças rejeitadas pelos pais, mulheres estupradas, filhos fora do casamento, epiléticos, alcoólatras, indivíduos sem documentos… de certa forma, todos aqueles que não se encaixavam nos padrões de comportamento da época iam parar no “hospício de Barbacena”.
Além da privação da liberdade e internação à força, o manicômio submetia os indivíduos a tratamentos desumanos. Inúmeras foram as vítimas de maus tratos, inanição e eletrochoques. O nome “Holocausto Brasileiro” se dá pelo horror ao resultado: o hospital foi responsável pela morte de 60 mil pessoas, das quais 70% não tinham sequer diagnóstico de doença mental.
Como se não bastasse todos os infortúnios, os corpos das vítimas eram vendidos às faculdades de medicina, gerando lucro para o manicômio. E quem reclamaria o corpo de “pessoas desajustadas”, naquela época?
Os elementos de todo esse contexto lembram os trágicos acontecimentos do nazismo, em que pessoas livres eram levadas, de forma bruta, a campos de concentração, sem comida e amontoadas em espaços insalubres para morrer sem razão.
Os fatos traumáticos vivenciados no Hospital Colônia de Barbacena durante oito décadas jamais serão esquecidos. Eles ainda trazem marcas difíceis para a comunidade local, assim como para os familiares das vítimas e, claro, para a medicina.
O local foi fechado nos anos 1980, encerrando um ciclo de horrores e agressão contra a humanidade. Hoje, parte do hospício foi transformada em museu, como uma forma de manter viva um período triste da nossa história. Ver para entender e não repetir.
Hospitais como esse não existem mais no Brasil – e a luta antimanicomial vence as maiores batalhas –, mas, fora dos muros de uma instituição, ainda precisamos melhorar nossa conduta. A cultura do abandono, do desprezo e a falta de empatia com quem realmente tem transtornos mentais é uma página que precisa ser virada.
Política de tratamento mental no Brasil
Entende-se como transtorno mental toda condição que impede o indivíduo de ter uma vida digna de contato com o mundo externo, podendo acarretar problemas físicos, alteração de comportamento e isolamento social.
Como exemplo das mais conhecidas podemos citar a esquizofrenia, a ansiedade, a bipolaridade e a depressão.
Aos trancos e barrancos, ainda temos programas pelo SUS que possibilitam atendimento humanizado aos pacientes com doenças mentais. Com a reforma psiquiátrica, caracterizada pela extinção dos manicômios, muitos outros serviços foram abertos, como os Núcleos e Centros de Atenção Psicossocial. Eles retiram da pauta a ideia de internação e apostam em modelos mais sociáveis, que aproximam o paciente da família e da comunidade.
Ações inovadoras, como consultórios de rua, residências terapêuticas, equipes da saúde da família e centros de convivência e cultura também fazem a diferença na vida das pessoas que enfrentam não só a doença, mas todas as consequências que ela gera, como abandono familiar, discriminação social, dificuldade financeira e jurídica, violência e todos os tipos de privações.
No final de 2020, o governo federal apresentou um projeto ao Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) um projeto para revogar cerca de 100 portarias sobre saúde mental. Essa decisão atinge em cheio inúmeros programas do SUS e enfraquece as políticas de saúde mental da rede pública.
A retirada de verbas para tratamentos psiquiátricos vai trazer sofrimento e insegurança a pacientes e familiares que não terão equipamentos psicossociais para recorrer periodicamente dentro do sistema de saúde pública.
A omissão do Estado em relação à saúde mental traz para o debate a ascensão e facilitação dos “retiros psiquiátricos”, instituições particulares que internam pacientes para reabilitação de drogas, álcool e doenças mentais no geral. Em sua maioria, essas casas são fundadas com viés religioso.
Não se trata de desmerecer qualquer tipo de crença, mas nem sempre esses lugares vão ajudar o paciente com transtorno mental a alcançar uma qualidade de vida satisfatória. Muitos não contam com psiquiatras e psicólogos em seu quadro de funcionários e, talvez por despreparo ou falta informação, podem reforçar mitos e desconhecimento, contribuindo para mal-entendidos e preconceitos.
Por se tratar de uma condição relacionada à saúde, o mais aceitável e prudente é que se siga a ciência, possibilitando a profissionais capacitados o contato com o paciente e o correto diagnóstico. Só o médico tem como propor tratamento adequado de acordo com seu transtorno mental.
O que esperar para o pós-pandemia
Estamos vivenciando um período bastante conturbado. A pandemia trouxe complicações clínicas diversas, em virtude de um vírus devastador, incluindo o quadro psíquico. A dificuldade em passar por uma situação inusitada não é um exagero. O medo da contaminação e não poder ter uma relação mais próxima com outras pessoas são coisas das quais nos desacostumamos – e ser pego de surpresa não é o melhor dos mundos.
Acredito que o isolamento social vai respingar em todo mundo, mesmo em quem nunca foi diagnosticado com transtorno mental – seja porque o médico não detectou o diagnóstico ou porque, por preconceito, ele nunca foi procurado para tanto. Os próximos anos podem ser de episódios de ansiedade, depressão, síndrome do pânico, insônia e outras patologias que impedem o indivíduo de progredir no trabalho, buscar oportunidades e se inserir no meio social.
A melhor forma de lidar com tudo isso, e superar essas dificuldades, é contar com a ciência e com a medicina, que andam tão desprestigiadas hoje em dia… a realidade é que só o conhecimento científico pode nos salvar das doenças. Enquanto isso, alimentar estigmas e preconceitos geram desconfortos em pacientes e podem tornar o tratamento ainda mais difícil.
Na dúvida, não julgue, não tema o diagnóstico e não abandone quem precisa de ajuda. O médico psiquiatra não é “coisa de gente doida”, é coisa de gente.
A clínica Dr. Antônio Orlandini está de portas abertas para conversar e tirar todas as dúvidas de pacientes e familiares. Agende sua consulta!